terça-feira, 14 de junho de 2011

"Canta-me como foi!"

“Canta-me como foi!”

Pedido estranho. Como se a cantar se contasse! Só podia ser gralha tipográfica ou resultado da leitura apressada de uma caligrafia descuidada, disse-se, como contaram depois.

Mas foi mesmo através da cantiga que a “Tuna Sabes Cantar” contou, cantando, histórias para celebrar o 37.º aniversário do 25 de Abril de 1974, no Cine Teatro Paraíso.

Foi bonita a festa, pá”.

Há muito que os cravos murcharam, mas nessa noite de 29, entre o 25 de Abril e o 1.º de Maio dos trabalhadores, revisitaram-se hinos mobilizadores e canções de muitas lutas, de resistência e de conformismo, de coragem e de esperança, viajando do século XIX para os nossos dias, desde o Chile até à Itália, com Portugal sempre no horizonte.

E contou-se, cantando, dando vivas a um rei que largou o seu reino brasileiro para devolver a soberania ao povo, e celebrando uma Maria, mulher do Minho, cansada de tanto aguentar, e que largou a vasilha na Fonte para marchar, de espada na mão, para defender a santa liberdade, num qualquer ano do século XIX. No momento seguinte ouve-se um Hino de uma Mocidade atormentada que marcha, cantando e rindo, como queriam os ditadores de um Estado Novo que, de novo, as liberdades tinham encarcerado. Em fundo, canta-se que Angola é nossa, que é Portugal, e que, por ela e outras parcelas, se justificava morrer e matar. E o canto que se queria patriótico termina com saudação fascista, que rapidamente se transforma no manguito insolente do eterno Zé Povinho de Bordalo Pinheiro, cerrando-se depois o punho ao som dos hinos revolucionários que mobilizaram tantos em tanto lado. Das cabeças saltam os bivaques feitos de jornal como são feitos todos os trajes de faz de conta. Avante!, então, porque não? Porque não se ergueriam as vítimas da fome, com tal música, agitando bandeiras, vermelhas ou de todas as cores do arco-íris, internacionais, povos unidos dando graças à vida, gratos a comandantes de muitas partes, glorificando o valor do trabalho e o mérito da unidade.

Em alguns momentos o silêncio da plateia emergia ruidosamente, quase se adivinhando bocas abertas e espanto perante as saudações malditas, punhos cerrados e violentos, varapaus e promessas de revolução, direita e esquerda extremadas, tardando a canção em irromper das gargantas de todos. Cantava-se em italiano e espanhol, canções de luta, de trabalho, ou apenas de ninar, porque as crianças tinham que dormir enquanto as mães estavam no campo.

E ouvimos chegar mais cinco e Foi bonita a festa, pá”. Uma aragem tornou audível o voo livre de gaivotas em campos de vermelhas papoilas do Portugal ressuscitado. Dos bastidores saltam rapazes e raparigas agitados a golpes de megafone, saloios, enfermeiros e soldados, com cabazes e garrafões, gente feita de Luta e irreverência, representantes de gerações que descobriram outras formas de resistir e construir um futuro. Em tantos momentos se quebrou a harmonia da ocupação do espaço, tuna aparentemente fragmentada, em confronto quase físico, panos vermelhos de um lado, desafios corporais do outro, emoções vibrantes, afectos nos olhos.

De tempos em tempos emergia um velho e caquéctico professor televisivo que abraça explicações com amplos gestos e revela pistas e verdades em cenas só aparentemente humorísticas. Uma saraivada de tiques precisos denuncia a história manipulada e a verdade oficial que serve. O apresentador de serviço revela-se anarquista e navega à bolina através da sala e da verdade, afastando o texto oficial e submergindo-o numa a enxurrada imaginativa.

Um pouco antes, e não depois do adeus, chegou outra vez a memória de Grândola, vila morena e livre onde os homens eram fraternos, abrigados sob árvores seculares ou marchando rumo ao futuro e cantando, voz com voz, lado a lado. Repetia-se a música de abertura da festa, desta vez sem os alunos que, armados de vassouras, haviam varrido o palco, dançando, como devem ser varridas as amarras da prisão de um povo inteiro.

Foi bonita a festa, pá”. E todos os que tinham guardado um cravo de Abril, e todos, os presentes e os ausentes da festa de 1974, e todos os que não tinham colhido pessoalmente uma flor no jardim finalmente livre, com a nossa gente, puderam cheirar um pouquito do suave aroma da história dos homens de todos os tempos e de todos os lugares quando encontraram a liberdade.

Perguntavam-nos: Tu! Não sabes cantar?!

Ora! Mas cantámos! Juntos, sabendo que a cantiga é uma arma, que tanto pode contribuir para um genocídio como para a liberdade e felicidade dos povos.

Foi bonita a festa, pá”.

Fernando Santos


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